quinta-feira, 25 de julho de 2013

Carros A falência de Detroit, o Ford Mustang e o nosso amor aos esportivos

Em Detroit nasceu o maior ícone da indústria automotiva norte-americana do pós-guerra. Também foi a terra da Motown, a gravadora que reuniu quase todos os maiores artistas de soul e funk dos EUA, como Stevie Wonder, Marvin Gaye e o The Jacksons 5. Hoje, tudo o que resta é uma quase cidade-fantasma cinza, esquecida e enterrada com uma dívida de 18,5 bilhões de dólares, tratada pelos norte-americanos de forma exteriorizada como um corpo estranho e que não lhes interessa muito – exceto como uma lição de mal planejamento. Por muito pouco, o Mustang não seguiu o mesmo caminho – e não há garantias de que seu futuro está livre disso. Infelizmente.


Faz quase meio século. Em 9 de março de 1964, o primeiro Ford Mustang saía da monumental fábrica Rouge (destaque verde no mapa), a mesma que produziu quase todos os componentes do Ford T e que ficava a apenas alguns minutos do escritório central da marca. Tecnicamente, a planta ficava na cidade vizinha de Dearborn – mas a área que circunda o rio Detroit é uma suruba geográfica: em nome da construção do mito Motor Town, tudo virou uma coisa só. Até a cidade canadense de Windsor – onde eram fundidos os seus clássicos V8 289 e 302 (Windsor Casting, no destaque vermelho) – era considerada como parte de Detroit. No mapa abaixo, a linha negra divide os EUA do Canadá.



Apesar de ser um dos carros mais bem-sucedidos da história, com quase nove milhões de unidades produzidas (o primeiro milhão foi atingido já em 1966!), o Mustang estava longe de ser um projeto ambicioso tecnicamente: pelo contrário, tratava-se de um cupê muito simples por baixo (boa parte de seus componentes vinham do Ford Fairlane e do Falcon), mas com design sofisticado de inspiração levemente europeia e uma das mais compridas listas de equipamentos e motorizações já vistas pelo homem. Do carro de secretária (US$ 2.368) ao monstro dos autódromos Shelby GT350 aí embaixo (US$ 4.547), tudo dependia do seu bolso e do seu pé direito.

Aliás, o Mustang sequer nasceu ambicioso mercadologicamente: a projeção da Ford para o primeiro ano completo eram de 100 mil carros – mas só em 1965, foram vendidas 559.451 unidades, o que exigiu a expansão da produção para as plantas de Nova Jersey e da Califórnia. O produto era muito mais do que os executivos conseguiam ver na época.




Fermento na massa

Em 1965, encher o tanque de gasolina do Mustang até a boca custava US$ 4,96 – o equivalente a pouco mais de R$ 60 hoje. No contexto de próspero crescimento econômico da era baby boomer, isso não era nada. Mais importava a briga entre Ford, Chevrolet e Chrysler – as três grandes de Detroit: imperava a filosofia win on sunday, sell on monday. Era importante vencer nos autódromos da Nascar e nas pistas de arrancada da NHRA, mas principalmente, ninguém queria ficar para trás nos pegas de semáforos, cujos quarteirões eram separados por 1/4 de milha – ou 402 metros.

Rebeldes sem causa? Mais para pais de família, que defendiam as suas marcas como se defende times de futebol no Brasil. Eram outros tempos, que assustavam bastante as seguradoras e o governo. A pressão aumentava a cada acidente fatal. Era uma conta imediata: se você tinha dinheiro (e não precisava de muito), tinha um muscle car extremamente potente. Mesmo que o seu pé direito não fosse pesado, a cavalaria dava status – como é até hoje. Mas antigamente os carros não tinham nenhuma ajuda eletrônica e ninguém usava cintos de segurança.



Como uma bola de neve, os motores ficaram maiores e mais potentes a cada ano. Assim, em 1967, o Mustang recebeu o seu primeiro V8 big block opcional: o FE 390 (acima), com 6,4 litros e entre 324 e 340 cv. Em 1968, surgia o Mustang 427 e 428 Cobra Jet (abaixo), 7.0 (ou seja, dois litros a mais que os primeiros Mustang mais radicais) e com até 415 cv. As relações de diferenciais ficavam cada vez mais curtas para garantir as acelerações mais agressivas nas arrancadas. A gasolina usava cada vez mais chumbo tetraetila para tolerar as insanas taxas de compressão dos motores e render o máximo de potência.



Paralelo a tudo isso, contudo, um fantasma observava a orgia dos muscle cars de perto. E acabaria com a festa em pouquíssimos anos.


Corda no pescoço dos motores, da indústria e em Detroit

É incrível como a crise do petróleo de 1973 abalou a indústria automobilística norte-americana em todos os sentidos possíveis. O Mustang, tragicamente, é um dos maiores ícones desta perda de rumo. Poderíamos falar dos motores que encolheram e que foram estrangulados ao limite – mas isso é até compreensível, já que os países árabes subiram o preço do barril do petróleo em mais de 300% devido ao apoio norte-americano a Israel na Guerra do Yom Kippur.

O que não é compreensível é isso:



Me mate, por favor. O que foi que eles beberam ou fumaram? Será que em algum momento alguém achou esta caricatura esquizofrênica e anacrônica (note as rodas e pneus com faixa branca, inspirados em carros da década de 1940 e 1950), chamada Mustang II Ghia, mais atraente que os carros que vimos neste post até então? Para arrematar a aberração, em 1974 foi sancionada uma lei que revisou os para-choques dos carros vendidos nos EUA: eles deveriam resistir a impactos de até 8 km/h sem causar qualquer tipo de dano à lataria, faróis e sistema de arrefecimento. O que fizeram os americanos? Deixaram os carros com queixos do Mutley. No Mustang II, a única coisa realmente bacana é o sistema de suspensão dianteira e de direção – muito transplantado para carros de corrida.

A década de 1970 foi o começo da catástrofe para Detroit – até a gravadora Motown partiu para Los Angeles em 1972! O que explica a esquizofrenia do Mustang e a de muitos outros carros, como o Chevrolet Vega e o Ford Pinto, foi a invasão dos econômicos modelos japoneses no mercado norte-americano, incentivada pela crise do petróleo. Repentinamente, o quanto que se pagava por um tanque cheio passou a importar bastante. E a indústria automotiva dos EUA perdeu o rumo e ficou na sombra por muito, muito tempo. Abaixo, temos um Mustang 1980. Sim, eles insistiram nesta silhueta de caixote por quase duas décadas. E nesta época, o Mustang correu sério risco de morrer.



A Chrysler, por exemplo, ficou quase vinte anos fazendo sedãs dignos de Charles Bronson, picapes e SUVs e só voltou a se encontrar no mundo dos esportivos com o Dodge Viper, em 1992. Alguns modelos da Chevrolet e Ford, como o Camaro e o próprio Mustang, insistiram no V8 durante os anos 1970 e 1980, completamente estrangulados com menos de 150 cv, mas bebendo quase tanto quanto antigamente – o que justificou o estigma dos motores ineficazes e beberrões.



Após 19 anos de tortura estilística, as coisas finalmente mudariam para melhor no meio dos anos 1990. A quarta geração do Mustang (1994-2004) não somente marca o fim da recessão norte-americana de 1987, superada somente em 1993, como também acompanhou o boom econômico dos EUA – período durante o qual o PIB do país cresceu ano após ano, sem registrar nenhuma queda, até 2000, quando quase dobrou para US$ 9,8 trilhões em relação aos US$ 5,5 tri de 1990.



Com estes ares otimistas, o Mustang deixou de tentar macaquear carros japoneses e compactos americanos para finalmente voltar a ser o Mustang: um cupê relativamente longo e genuinamente potente e esportivo. Seu design ainda não era nada espetacular, mas a Ford foi afinando a receita com o passar dos anos. Acima, temos um Cobra R de 2000: se ele não tem nada do modelo original de 1965, ao menos sua proposta era absolutamente fiel – um muscle car de verdade, imponente e veloz, feito para assustar esportivos europeus.

Tudo isso agiu como o prelúdio para a sexta geração (acima), que concluiu o processo de resgate da essência com chave de ouro. O Mustang bebeu o máximo que pode de suas raízes: até os bancos e o painel se inspiraram de forma escancarada no modelo original. A diferença é que o seu público mudou radicalmente. Afinal, o Mustang em sua época era um carro contemporâneo – hoje, ele busca o passado. É retrô.
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O grito de Carpe Diem

Como o Fiat 500, o Mini Cooper e seus rivais Dodge Challenger e Chevrolet Camaro, hoje o Mustang desfruta de uma posição relativamente confortável: a de carro de nicho, baseado no resgate cultural sessentista que dominou o ocidente na última década. Desde 2005 (ou seja, após 41 anos de história), o muscle é feito na fábrica de Flat Rock (ainda em Michigan), a 32 km da antiga planta de Dearborn – que ficou apenas produzindo a F-150 desde então. Para algo tão segmentado, os números são bem expressivos: em abril deste ano, a nova planta comemorou o seu milionésimo Mustang produzido.

Sim, é verdade que, tecnicamente, paga-se um preço pela silhueta fiel ao modelo da década de 1960. São exatamente os mesmos vícios de todo carro da época: grande por fora, apertado por dentro, visibilidade e aerodinâmica limitadas… estes são apenas alguns dos desafios que os engenheiros da Ford e da SVT precisam lidar e que os seus passionais consumidores aceitam em nome do estilo. Dinamicamente, contudo, o trabalho ficou tão bem feito que o novo Mustang GT briga lado a lado com o (agora finado) BMW M3 em um autódromo – custando a metade do preço. E, claro, ele é tão seguro quanto qualquer outro automóvel.


Contudo, o maior desafio do Mustang não está em suas limitações técnicas. Não está nos rivais. Não está em Detroit nem em lugar algum da indústria automobilística. Está nos consumidores. Cada vez menos eles estão interessados em automóveis – e a relação da média das pessoas com os carros está cada vez menos emotiva. Se você nasceu entre a década de 1940 e 1980, deve se lembrar como a chegada do carro novo (mesmo que fosse usado) na família tinha uma simbologia forte. A tendência, cada vez mais, é de ele ser tratado como uma ferramenta, um eletrodoméstico, um gadget de nicho desprezado por muitos. Uma espécie de BlackBerry com quatro rodas.

Paralelo a isso, há uma sensação de que o carro foi promovido ao mal do século 21, talvez por um misto de preocupação ambiental com a falha em seu princípio mais básico, que é sua função como meio de transporte – algo impossível de ser cumprido quando não se há mais horário de rush nas grandes metrópoles, mas sim, um sólido bloco de congestionamento ao longo de todo o horário comercial. E olha que nem falamos sobre vagas de estacionamento nas regiões centrais das cidades.

No meio deste cenário, esportivos como o Mustang representam um desesperado grito por aquilo que está lentamente se perdendo, uma espécie de filosofia carpe diem no fim da festa – porque o futuro não está em muscle cars com motores aspirados de grande deslocamento, está?

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Afinal, o que é Detroit, senão a completa contraposição cinza, atrasada, abandonada e permeada de segregações raciais de uma ensolarada, saudável, tecnológica e livre de preconceitos Califórnia? É simples: uma é a terra dos gas guzzlers. A outra, do Toyota Prius. É o Vale da Ferrugem contra o Vale do Silício. Qual destes lugares você acha mais atraente para todo tipo de investimento – imobiliário, tecnológico, até mesmo industrial? Agora, coloque este problema em uma perspectiva política. É por isso que o pedido de falência de Detroit está sendo tratado de forma relativamente distante pelos norte-americanos: se você espera por enérgicas reações patrióticas e grandiosas ações de iniciativa privada, talvez seja melhor puxar uma cadeira. Eu acho que, com muito planejamento e alguma sorte (ou seja, sem crises econômicas no período de retomada) a cidade tem chances de se levantar das cinzas, mas não na mesma proporção que Nova York o fez nos anos 1970.

É aqui que chegamos ao cerne do problema de Detroit: ela não soube se reinventar. A cidade cresceu e declinou por causa do modelo norte-americano da indústria automobilística, que por muitas décadas ficou estagnado tecnologicamente – e agora que reagiu, está investindo ou nas cidades e estados vizinhos ou em países completamente distintos, como o México (GM e Ford), Canadá (Chrysler) e até a Coreia do Sul (GM), locais mais bem estruturados e mais interessantes em termos de mão de obra e fluxo produtivo em escala global.

Além da falta de infra-estrutura e do excesso de dependência do estilo de vida industrial, até as casas de Detroit estão estagnadas no tempo e seguem o mesmo estilo e proporção do pós-guerra. Pequenos lares suburbanos com três dormitórios, um banheiro e sem garagem estão por toda parte – muitos deles abandonados há vários anos, o que só ajuda no processo de desvalorização imobiliária.



Agora começamos a pior parte. Entre 1900 e 1930, época que condensa a chegada de todas as grandes marcas na cidade, o processo fordista e o massivo movimento imigratório pré-crise econômica de 1929, a população de Detroit saltou de 265 mil para mais de 1,5 milhão. Na década de 1950, este número chegou a 1,8 mi. Desde a crise do petróleo, a cidade viu sua população cair à média de entre 100 e 200 mil habitantes por década – até chegarmos ao patamar atual de 700 mil habitantes.

O gráfico abaixo acaba escondendo uma das maiores fugas populacionais em Detroit: entre 2009 e 2010, os habitantes despencaram de 910.921 para 711.700. A razão? Em 2009, a GM e a Chrysler assinaram seus pedidos de concordata – a marca da gravata, por exemplo, tinha registrado perda em caixa superior a 10 bilhões de dólares. Nesta época, apenas em Detroit ocorreram quase 20 mil demissões, turnos foram suspensos e as fábricas trabalharam muito abaixo de seu limite operacional. Assustados, muitos fugiram de uma cidade cuja infraestrutura já estava mais do que comprometida.



Mas o silencioso, longo e constante declínio das estatísticas acima é que é o mais assustador. Por trás da falência de Detroit, não houve uma ruptura. Não foi algo súbito, inesperado e incalculável. Foi um lento processo de abandono em um modelo de administração viciado, obtuso e fechado em si. E ao contrário do Mustang, não há minoria que seja apaixonada ou que sequer simpatize com isso. Ou você acha que o governo federal só descobriu a situação de Detroit depois do pedido de falência?


O fim dos tempos?

Como disse antes, há uma sensação de que estamos vivendo um último grito de carpe diem. Nós, entusiastas automotivos, temos alguma chance? Governos, ambientalistas e parte crescente da sociedade não são nada favorável aos carros – especialmente os mais beberrões e poluentes, como os preparados. E infelizmente, como acontece com o açúcar e com a gordura, o sabor está na sujeira mesmo. Sim, esportivos elétricos são divertidos – pilotei o Mercedes SLS Electric Drive no autódromo de Paul Ricard e dei várias risadas. Mas a experiência não se compara: é como um carnívoro provar um hambúrguer vegetariano e achar gostoso. Isso não quer dizer que ele queira viver disso.



Soa apocalíptico e infantil, mas vejo algo como uma Batalha de Termópilas automobilística acontecendo neste momento. Os sete mil gregos são formados por Mustang, BMW M3, Camaro, Mercedes-Benz C63 AMG, Challenger, Ferrari 458 Italia, Dodge Viper, Nissan GT-R (e o seu rival da Mitsubishi que está a caminho!), todos os antigos, todos os preparados, todos estes carros que já representaram a liberdade, status e diversão de forma descompromissada – e que viraram ícones ambulantes do egoísmo espacial, do desnecessário e do desprezo ao meio ambiente. Nesta guerra, eles não possuem a menor chance.

Lamente-se com as palavras de Bob Lutz – o executivo que já salvou anteriormente a GM, a Ford e que esteve envolvido no desenvolvimento de um dos BMW mais importantes da história, o Série 3 E21:

‘”Não haverá mais motoristas no trânsito. Os cavalos costumavam ser o principal meio de transporte, até que foram banidos das ruas pela chegada dos carros. Ainda há uma enorme quantidade deles, mas agora ficam guardados em estábulos. São usados para esporte e lazer. É o que acontecerá com os carros. Nos Estados Unidos, já existem clubes automotivos. Eles compram um terreno imenso, constroem duas ou três pistas, piscina, restaurante, salão de festas e garagens. Você pode deixar seu carro lá, sob cuidados. Em vez de jogar golfe, você pode ir lá, vestir um macacão e dirigir. O futuro do carro será sem motorista, com funcionamento autônomo. O prazer de dirigir, como o conhecemos, será algo para lugares fechados.”



Mas… será que está tão ruim assim? Porque nossa geração tem muita, muita sorte. Pense sobre isso: carros antigos, preparados, esportivos novos, todos estão curtindo juntos esta grande festa – e o Facebook, o YouTube, o Instagram, as GoPro da vida e todos os celulares do mundo possibilitam que muita coisa seja vista e compartilhada. Hoje, caso tenha as condições financeiras, você pode escolher entre um Mustang GT500 zero quilômetro com quase 800 cv e um Mustang GT350 1965 – o primeiro da saga de Carroll Shelby -, todo restaurado com componentes novos, graças à evolução do mercado e da indústria aftermarket. Pode até botar a mecânica do moderno no antigo. E caso queira fazer algo por conta própria, não faltam ferramentas, manuais e vídeos. Pensando bem, estamos no melhor momento da história para quem é entusiasta. Mesmo que seja o último.



Nós torcemos para que o Mustang de amanhã não seja a Detroit de hoje. Por melhor que o carro seja, os prognósticos não são animadores. Mas, mesmo se tudo der errado, ao menos 30 milhões de lembranças das três grandes de Motor Town estarão por aí, nas garagens de todo o mundo. Não existe souvenir melhor do que este.

E os ambientalistas que nos perdoem: nosso pé direito é pesado.

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