domingo, 8 de setembro de 2013

Motos O prazer em ser diferente

Cada vez mais comuns no Brasil, as oficinas de customização de motocicletas mudam da pintura ao chassi e transformam projetos originais em máquinas exclusivas com a cara do dono

destaque chrystiano Miranda, dono da oficina garage metallica, em seu escritório

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, soldados americanos voltavam para casa ansiosos para exorcizar os horrores vividos nas frentes de batalha. Sem perspectiva de futuro ou dinheiro no bolso, encontraram nos carros e motos dos pais e avós, empoeirados nas garagens, seus passaportes para a diversão. Muitos haviam aprendido na guerra noções de mecânica e começaram a trabalhar em cima das máquinas para torná-las mais potentes e – por que não? – mais estilosas. Mexiam nos motores, retiravam peças e mudavam a pintura. Nascia assim, especificamente na Califórnia, a Kustom Kulture (neologismo que, em português, pode ser traduzido como cultura da customização). A onda ganhou força com o lançamento do filme Easy rider, em 1969, no qual Dennis Hopper e Peter Fonda cruzam os Estados Unidos a bordo de suas Harley- Davidson estilo chopper (motocicletas compridas, de garfo longo).

Décadas depois, a customização de motocicletas segue em alta no Hemisfério- Norte, com fãs até mesmo em Hollywood – caso do ator Brad Pitt, que possui pelo menos cinco modelos do tipo. No Brasil, com o crescimento da frota de motocicletas, que já atinge mais de 20 milhões de unidades segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo), quem quer se diferenciar na multidão tem recorrido à personalização das motos. Existem mais de dez grandes oficinas especializadas no serviço no eixo Rio-São Paulo. Em geral, cada uma chega a realizar cerca de cinco projetos de customização por mês. “Quem procura o serviço quer imprimir a sua personalidade na moto e se destacar nas ruas”, diz o mecânico Chrystiano Miranda, 39 anos, proprietário da oficina especializada em Harleys, Garage Metallica, aberta há 11 anos na Vila Madalena, em São Paulo.

Em locais como esse, é possível fazer da mais simples à mais complexa intervenção. Tem cliente que troca uma peça ou outra, como um par de espelhos retrovisores ou um jogo de lanternas, apenas para imprimir seu toque pessoal. Também há quem busque mudanças consistentes, alterando pintura, guidão, garfo, rodas, mesas e escapamento – para aumentar o volume do ronco do motor. Por outro lado, não são raras as transformações mais radicais, nas quais apenas o motor é aproveitado. Nesses casos, o veículo é desmontado para ser reconstruído com a marca do customizador. Para isso, podem-se usar peças desenhadas exclusivamente e feitas à mão nas próprias oficinas, a partir de tornos, fresas e soldas. Eventualmente, partes usadas ou itens importados, especialmente dos Estados Unidos e da Europa, também são aproveitados. E, muitas vezes, motores, antigos ou novos, são mexidos para se tornarem mais potentes. Não há regras.

As intervenções costumam deixar as motocicletas bem mais atraentes que as originais de fábrica. Mas é preciso ter cautela: mudanças radicais feitas sem respaldo técnico podem comprometer a estrutura. Às vezes, acontece também de algumas alterações dificultarem o comportamento da moto no asfalto, o que não chega a ser um problema para boa parte dos clientes que procuram o serviço. “Quando a pessoa se acostuma, o que incomodava antes deixa de ser uma questão”, diz o customizador Wagner Monteiro, 55 anos, sócio da Brazil Custom, em operação desde 2002 em Botafogo, no Rio.



Estilo e cultura

em família acima, agachado, wagner monteiro, dono da brazil custom, e seu filho

tradicional o arquiteto ricardo medrano abriu a johnnie Wash, especializada em harley- davidson

No Brasil, há especialistas de diferentes perfis. Ricardo Medrano, 50 anos, é arquiteto de formação e proprietário da Johnnie Wash, fundada em 2004 na Vila Olímpia, em São Paulo. Especializada em Harleys, marca que completou 110 anos este ano, a oficina trabalha também com outras grifes, como Honda e Triumph. Suas criações são limpas (sem muitos penduricalhos) e remetem ao clássico. “Busco respeitar os estilos tradicionais”, diz ele. Na cultura custom, há diversos tipos de motocicletas. Além das choppers de Easy rider, há as bobbers e café racers, entre outras – todas elas com características próprias (leia quadro). Por outro lado, nem todos os profissionais do meio são puristas a ponto de sempre seguir os estilos à risca, e muitos acabam mesclando um com outro. Monteiro, da Brazil Custom, por exemplo, raramente interfere no briefing do cliente, nem sempre ligado nessa questão. “O cara tem que ficar feliz com o resultado final”, resume ele, que constrói máquinas a partir de motores Harley ou equivalentes (SS ou RevTech).

Sócio da TopHat Custom Shop, aberta em 2000 na Consolação, em São Paulo, o empresário Teydi Deguchi, 33 anos, é autodidata no ofício. Seu pai era caminhoneiro e mantinha um galpão próximo de casa, na zona norte da cidade, para mexer em carros que adquiria em ferros-velhos. Deguchi começou a frequentar o local aos 7 anos e customizou sua primeira moto aos 13. Hoje, diz que prioriza a aparência, ainda que isso afete a dirigibilidade. “Minhas motos são obras de arte para serem admiradas e funcionam bem em pequenos rolês”, diz ele, que transforma máquinas de qualquer marca. Piloto desde os 11 anos, Miranda, da Garage Mettalica, concluiu no ano passado a Motorcycle Cannon Ball, uma importante corrida costa a costa dos Estados Unidos. Formado em design gráfico, ele trabalhou em duas concessionárias da Harley na Baía de São Francisco, nos Estados Unidos, de 1997 a 2002, quando fez curso de mecânica e atuou na área. “Minhas motos são feitas para rodar na cidade e pegar estrada”, diz.

oficina e loja teidy deguchi, sócio da tophat, até desfila coleção de moda na casa de criadores

Os donos de oficinas de customização no País são estudiosos da cultura, conhecedores da história e antenados com o que acontece no Exterior – em comum, têm muitas tatuagens espalhadas pelo corpo. Entre os ídolos desses profissionais está o lendário artista e construtor de motocicletas Indian Larry (1949-2004). O americano seguia a linha old school ao produzir suas choppers, entre elas as famosas “Daddy-O” (algo como papai O), “Wild Child” (criança rebelde) e “Chain of Mistery” (corrente de mistério). Interessado por customização desde criança, foi na prisão (ele foi preso por roubo a banco, delito que praticava para manter seu vício em heroína) que ele aprimorou seus conhecimentos em mecânica. Livre das drogas pesadas, Larry começou a fazer sucesso anos antes de sua morte. Faleceu aos 55 anos ao praticar a bike surf (manobra que consiste em ficar de pé no banco da motocicleta em movimento) em um evento do qual participava. Em homenagem a Larry, Miranda tatuou um ponto de interrogação (marca registrada do mecânico americano) em cada um dos braços.



Chamando a atenção

Assim como os donos de oficinas, o fotógrafo paulistano Rodrigo Marques, 38 anos, é ligado no movimento Kustom. Mantém o tumblr Motógrafo (motografo.tumblr.com), onde posta sobre o assunto, e possui duas Harleys customizadas. “Tenho uma 883R que vem sendo mudada há seis anos,
desde que a tirei da concessionária”, diz Marques. “Troquei partes conforme o desgaste, trazendo peças dos Estados Unidos e confeccionando outras por encomenda.” Sua outra máquina é uma Softail Heritage, mais confortável, usada em viagens mais longas. No início do ano, foi desmontada na Garage Metallica e teve pintura, guidão, escapamentos e outras partes alteradas. “Elas chamam muito a atenção por onde passam. Mas são mais marmanjos que ficam ‘pagando’ do que minas que ficam pirando”, brinca ele.

Desfilar por aí com uma máquina personalizada é para poucos (ainda mais quando não há seguro para elas). Em geral, gasta- se de uma a duas vezes o valor da moto para fazer uma transformação profunda no projeto, mas acontece de o preço chegar a categorias estratosféricas. O tempo de execução também varia bastante. As transformações mais radicais levam meses. Nascido em Brasília e radicado no Rio, o headhunter Adrian Tsallis, 35 anos, pagou R$ 23.500 em uma Harley- Davidson Sportster 883 STD usada já pensando em cortá-la. Seu projeto, assinado por Monteiro, da Brazil Custom, custou mais deR$ 50 mil, incluindo peças (algumas feitas sob medida, caso do chassi, por exemplo) e mão de obra. Com a paciência de um monge budista, Tsallis levou dois anos para garimpar as partes e mais um ano para ver o projeto finalizado. Da moto original, foram mantidos apenas motor, filtro de ar, manetes de freio e documentos. Antes de alcançar o resultado final, um modelo esportivo inspirado nos estilos dragster e café racer, Tsallis enfrentou alguns percalços. “Aconteceu de me ligarem da oficina para dizer que não havia espaço para a bateria”, diverte-se ele, que é formado em engenharia, pratica kite surf e não possui nenhuma jaqueta de couro. “Gosto de design e sinto orgulho ao olhar para minha moto e saber que ela saiu da minha cabeça”, completa ele.

Diferentemente das oficinas convencionais, os endereços especializados são verdadeiros templos de adoração a motos. A Brazil Custom tem arquitetura caprichada (um galpão com piso de cimento queimado e tijolos aparentes) e decoração inspirada na cultura, com mesa de sinuca e tudo. A TopHat é um misto de oficina de customização, loja de acessórios, butique de roupas e estúdio de tattoo. Além de fazer peças, capacetes e bancos (em parceria com a empresa do tio de Deguchi, a Mário Bancos), a marca possui confecção própria de camisetas, camisas e jaquetas. A grife se apresenta na Casa de Criadores, semana de moda alternativa em São Paulo, desde 2011. Requintada na decoração, a Johnnie Wash, além de vender roupas e acessórios próprios e de outras marcas, mantém um bar, que serve refeições, e um lava-rápido de motos. Às sextas-feiras à noite, há apresentações de rock de garagem no formato acústico, atraindo clientes e curiosos. Ótimos pretextos para viver esse lifestyle.



Glossário da Customização

Antes de visitar uma oficina – e ter a sensação de que todos falam outra língua –, fique por dentro dos termos mais usados pelos frequentadores

Chopper

Motocicleta cujo projeto original é modificado. O estilo chooper é caracterizado por motos compridas, de garfo longo, assim como as dos personagens de Peter Fonda e Dennis Hopper no filme Easy rider.

Bobber

São as mais peladas possíveis (quando partes supérfluas são retiradas). Em geral, são mais curtas, o para-lama da frente é eliminado e o de trás é encurtado e fica bem perto do pneu. O ator americano Brad Pitt é fã do estilo.

Café Racer

O termo veio de máquinas inglesas transformadas para correr na rua. Eram usadas em voltas rápidas entre um coffee shop (ou pub) e outro. Em geral, têm o guidão baixo e o tanque estendido.

Dragster

Veículo leve equipado com motor extremamente potente, inicialmente projetado para provas de arrancadas em retas com um quarto de milha. Sua aparência é de moto de corrida.

Rat Bike



Moto detonada. A essência de uma verdadeira rat bike está em mantê-la rodando o máximo possível. Isso pede uma adaptação de partes e a instalação de peças que não fazem parte do projeto original. Hoje, encontram-se também exemplares de butique, com tanque sem pintura e mecânica zerada, por exemplo.

Rabo duro

São máquinas sem suspensão traseira, com o para-lama colado ao pneu e bancos de mola para compensar um pouco o desconforto.

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